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Radiola Urbana

Fotógrafo Cafi (1950 - 2019) deixa obra que confunde-se com a MPB

Ramiro Zwetsch

02/01/2019 19h23

Se a música é a única forma de arte que não exige a visão para ser apreciada (basta a audição), a imagem pode potencializar (e muito) o som. O fotógrafo e artista plástico pernambucano Carlos Filho usou sua lente para este fim e sua obra (com algo entre 200 e 300 capas de discos da música brasileira) alcançou a proeza de oferecer imagens que se confundem com os próprios discos – a ponto de uma coisa não existir sem a outra. Pense no LP "Clube da Esquina" (Milton Nascimento e Lô Borges, 1972) e será inevitável e imediata a associação com a fotografia de dois garotos na beira de estrada que estampa o trabalho. Cafi, como era conhecido, morreu no dia 1 de janeiro aos 68 anos vítima de um enfarto e deixa esse legado de ser o responsável pela imagem que identifica centenas de discos lançados por artistas como Fagner, Nana Caymmi, Edu Lobo, Beto Guedes, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e tantos outros.

A música que ficou identificada como a MPB de Minas, especialmente, deve muito ao artista. Além de "Clube da Esquina", Cafi é o autor do clique do par de tênis usada na capa do primeiro disco solo de Lô Borges, também de 1972. Os dois discos formam uma dobradinha inspirada, que eleva o status do já consagrado Milton Nascimento e chama atenção para uma geração privilegiada de músicos em ascensão que tocam e/ou escrevem em ambos os trabalhos (Lô, Toninho Horta, Beto Guedes, Novelli, Flávio Venturini, Nelson Angelo…). Nos dois casos, há uma ousadia para a época em relação à ausência de texto. "Clube da Esquina" não tem nada escrito na capa e o álbum de Lô traz apenas o nome do compositor. Na ocasião, o diretor artístico da gravadora Odeon, Milton Moreira, reclamou dos "tênis velhos" como imagem de capa. Atualmente, colecionadores e fãs se referem ao trabalho como "disco do tênis".

"Uma grande originalidade do Cafi é justamente essa síntese que ele fazia do som dos discos com uma foto. Diferente do Elifas Andreatto (outro cara importante em quantidade de capas pra música brasileira, que criava ilustrações, abstraía, fazia alegorias do som e muitas vezes não tinha a ver com o disco, mas com uma construção de objetos e signos muitas vezes até aleatórios ao som), o Cafi tinha essa concisão. Era uma espécie de logotipo. O 'Clube da Esquina' tem um logotipo, que é a foto daqueles dois meninos. Aquilo mostra uma coisa de companheirismo, de clube, de turma e o disco tem isso", observa o músico e compositor Romulo Fróes. "A capa com a foto do tênis é brilhante porque denota a juventude do Lô. Ele tinha 20 anos quando gravou aquele disco. Aquele tênis surrado transparece uma coisa de juventude. Mas pra mim, a capa que talvez seja a mais brilhante é a do 'Minas' (Milton, 1975) porque não só traduz o disco como traduz o Milton e o estado de Minas Gerais. O Milton vira a cara de Minas. É muito feliz aquele close na cara preta dele, é a tradução visual de Minas Gerais. É muito forte, extrapola o som do disco."

Em 2009, o artista fez a foto da capa de "Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos", quinto álbum do pernambucano Otto. O clique registra o músico em interação com uma obra do artista Tunga (morto em 2016). "Chamei Cafi para fazer a foto e ele topou. Foi um dia de prazer. Ele e Tunga eram amigos. Me sinto privilegiado por tê-los comigo nesse disco. É uma viagem. A imagem ajuda a traduzir o sentimento daquele trabalho, é um disco muito forte e carregado de arte. A imagem ajuda a revelar o disco, tem a ver com o clima das músicas", lembra Otto. "Fazer parte dos discos fotografados por Cafi é uma honra".

Embora essa produção de capas entre os anos 70 e 90 seja o viés na obra do artista que mais ganhou reconhecimento, ele também trabalhou muito em outras frentes. Foi fundador do coletivo de poesia Nuvem Cigana, com forte atuação nos anos 70. Participou de mais de 30 exposições coletivas e protagonizou uma individual, "Sombras da Noite", no Rio de Janeiro, em 2002. São célebres suas imagens do maracatu, manifestação cultural que ele acompanhou ao longo de quatro décadas e inspirou algumas publicações. "Cafi tem uns livros que registram o maracatu em Nazaré da Mata (zona rural pernambucana) que são um norte pra mim. São documentos sobre a cultura popular que são fabulosos. O olhar de Cafi encandeia, é uma obra viva", diz José de Holanda, fotógrafo bastante ativo no registro da música contemporânea.

Para a compositora, cantora, atriz e cineasta Ava Rocha, ele fez o cartaz do filme "Ardor Irresistível", de 2011. "Ele foi um poeta visual que ficou reconhecido por suas capas importantes, mas era também um artista plástico e um fotógrafo de primeira grandeza – e não gozou do reconhecimento merecido, ao meu ver", diz Ava. "O conheci no Teatro Oficina fotografando a peça 'Os Sertões'. De cara, ficamos amigos: ele tinha mundo, história e olhar; sempre antenado com o agora e um celeiro de memórias vivas da vida e da cultura brasileira. Fomos pra Canudos com a peça e lá filmei 'Ardor Irresistível'. Cafi sempre me dizia como tinha sido especial receber 'aquele ventinho' de Monte Santo (Bahia) ao meu lado. Ele fez o cartaz do filme a partir de milhares de fotos que clicou e fez minhas primeiras fotos no palco como cantora. Foi amigo de grandes artistas do Brasil, amigo de Dorival Caymmi. Ele andava muito desiludido com o Brasil também. Ele deixa um acervo precioso e único e deve receber uma homenagem à altura".

Cafi não tem, por enquanto, um verbete no wikipedia. É tema de um documentário ainda inédito de Lírio Ferreira, "Salve o Prazer".

Sobre o autor

Ramiro Zwetsch é jornalista, DJ residente da festa Entrópica, sócio da Patuá Discos e criador do site Radiola Urbana. Foi editor-chefe dos programas "Manos e Minas" e "Metrópolis", repórter de música do Jornal da Tarde e colaborou para "Ilustrada", "Caderno 2", “Bravo!”, “Rolling Stone”, “Bizz”, “Carta Capital”, “Select” entre outros.

Sobre o blog

Divagações e reflexões sobre as maravilhas contemporâneas e pérolas negras da música Brasil adentro e mundo afora.

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