Percussão, sopros e raça: Orquestra Afro-Brasileira toca em São Paulo
Imagine uma orquestra brasileira composta exclusivamente por músicos negros. Assim era a Orquestra Afro-Brasileira, que se apresenta nessa sexta (18/05) em São Paulo, no Sesc Pinheiros, com participação de Letieres Leite (da Orkestra Rumpilezz). Formada pelo maestro mineiro Abigail Moura em 1942, tem três discos gravados: o 10 polegadas "Obaluayê" (de 1957), o LP "Orquestra Afro-Brasileira" (1968) e o recente CD "Orquestra Afro-Brasileira 75 Anos", lançado em 2017. Com uma formação instrumental baseada apenas em sopros e percussões e ritmos recolhidos nos terreiros de umbanda e candomblé, o som esbanja profundidade na combinação dessas batidas com arranjos jazzísticos para os metais e letras (cantadas em português, mas também nas línguas africanas bantu e nagô na indígena nhengatu) que reverberam conteúdo de afirmação de negritude e antirracismo. O maestro, morto em 1970, compunha e arranjava todas as músicas.
A orquestra atual tem o cantor e percussionista Carlos Negreiros como líder e único remanescente das antigas formações – ele não só canta e toca no álbum de 1968, como foi quem apresentou o trabalho ao Helcio Milito, integrante do Tamba Trio e produtor da gravadora CBS, que lançou o LP. Atualmente, tanto este vinil como o de 1957 estão entre os mais raros e cobiçados da música brasileira. Já o CD recente reúne algumas regravações, composições inéditas de Abigail Moura e três temas criados por Negreiros. Sua voz de trovão, de timbre grave, ganha destaque e surpreende nos novos arranjos. Leia nossa entrevista com ele.
Como você entrou na Orquestra Afro-Brasileira?
Aos 19 anos, eu estudava canto na Escola Nacional de Música, atual UFRJ, e vi no mural do diretório estudantil um aviso que a Orquestra Afro-Brasileira necessitava de baixo para a ópera negra "Revoada Sinistra". Embora meu registro seja de barítono, fui assim mesmo. Fiquei surpreso: uma orquestra só de negros, com tambores à frente dos sopros. Era uma música estranha que me impressionou profundamente. A ópera não aconteceu, porém eu fiquei como um residente na orquestra fazendo todas as tarefas solicitadas – desde arrumar o estúdio com cadeiras, instrumentos de percussão e estantes, organização das partituras dos músicos na ordem e transporte dos instrumentos para os concertos. Na escola, o canto lírico era a meta. Quando tinha tempo livre, eu ia ao encontro do maestro, que me explicava como através da cultura e música afro se poderia traduzir o que se vê e o que se sente. Passei a fazer aula buscando uma técnica mais gutural e decidi mergulhar no universo proposto por ele.
Por que, em um dado momento, ele decide não incluir mais o piano na formação da orquestra?
Fomos realizar um concerto no Hotel Quitandinha, na região serrana do Rio de Janeiro. A plateia era constituída por formandos que festejavam com bebidas, salgadinhos etc. Quando a cortina do teatro abriu, houve manifestação de racismo com gritos e objetos atirados sobre nós. Nesse momento, o pianista abalado abandonou a orquestra. Sob forte tensão, houve o concerto que se impôs e terminou aplaudido. O maestro percebeu que a falta do piano não comprometia a qualidade sonora e resultava numa proximidade do som produzido pelas orquestras africanas.
Qual era a ideia por trás da decisão de trazer a percussão como elemento central da orquestra?
O maestro percebeu que o tambor tem a função agregadora e representa a ancestralidade no lúdico e no sagrado. Por isso tem grande importância na linguagem proposta pela orquestra – tanto na original como na atual.
Helcio Milito contava que foi você que o apresentou à Orquestra Afro-Brasileira e, consequentemente, foi fundamental para o lançamento do LP de 1968, pela CBS. Como foi isso?
Paralelamente com a atuação na orquestra, eu cantava em casas noturnas na zona sul. Nesse ambiente, conheci o Helcio Milito. Ele se interessava por percussão afro, que a essa altura era uma linguagem que eu já dominava por frequentar terreiros de umbanda e candomblé para desfrutar do ambiente e pesquisar os ritmos e cânticos. Gravei com o Tamba Trio e se estreitou uma amizade que o levou naturalmente a conhecer a orquestra. Hélcio era produtor da CBS, levou o projeto para a gravadora, onde não tivemos grande aceitação. Ele gravou e lançou assim mesmo e acabou sendo demitido.
É verdade que Abigail Moura insistia que você ouvisse apenas música brasileira? O que ele buscava com esta orientação?
É verdade. O maestro me orientou a perder o cristal, ou seja, não cantar de forma lírica e também que me dedicasse à musica brasileira e a que ele produzia, bem como pesquisar as mesmas fontes que ele utilizava.
A obra da Orquestra Afro-Brasileira aborda desde os anos 50 a temática negra, seus valores e também traz uma mensagem antirracismo. Passados mais de 60 anos desde o lançamento de "Obaluayê", o quanto você acha que o Brasil evoluiu em relação à igualdade racial?
Acho que houve avanços, mas precisamos de muito mais. O sistema de cotas raciais demonstrou que educação e oportunidades podem diminuir a desigualdade que vemos no nosso país. Precisamos ser representados pela diversidade que compõe a nossa nação. Da mesma maneira que o maestro diz em "Obaluayê", "trago em mim a herança de toda cultura ancestral, tenho o corpo fechado e ninguém pode me fazer mal", eu digo em "Salve a Raça Brasileira": "nessa Luta assumida, somos força, somos vida".
Vai lá:
Orquestra Afro-Brasileira
Quando: 18 de maio às 21h
Onde: Sesc Pinheiros – Rua Paes Leme, 195
Quanto: R$ 12,00 (comerciários), R$ 20,00 (meia-entrada), R$ 40,00 (inteira)
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