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Filme sobre Fela Kuti dá o recado: “não há alternativa senão resistir"

Ramiro Zwetsch

10/04/2019 12h00

Fela Kuti (1938 – 1997): músico nigeriano, inventor do afrobeat, ativista pan-africanista, opositor do governo militar da Nigéria nos anos 70, 80 e 90. Carlos Moore (1942): etnólogo cubano, ex-assessor de Malcolm X, amigo de Maya Angelou, militante do movimento negro, biógrafo de Fela. Sandra Izsadore: ativista e artista norte-americana, pantera negra, influência crucial na conscientização política do nigeriano. Joel Zito Araújo (1954) : cineasta brasileiro, diretor de filmes que refletem sobre o racismo no Brasil. Essas quatro mentes pensantes da intelectualidade negra mundial se entrelaçam em um mesmo discurso no filme "Meu Amigo Fela", em cartaz no festival de documentários É Tudo Verdade, com duas exibições programadas para os próximos dias: sexta, 12/04 (às 19h), no Centro Cultural São Paulo (São Paulo) e sábado, 13/04 (às 18h), no Estação Net Botafogo (Rio de Janeiro). A obra aborda a biografia do artista a partir de conversas conduzidas por Moore e, naturalmente, constrói uma reflexão sobre o ativismo negro ao contextualizar passagens vividas pelo entrevistador em sua convivência com Maya Angelou e Malcolm X.

Fela teria feito 80 anos em outubro do ano passado e este blog publicou, na ocasião, uma playlist comentada que relaciona suas principais composições com algumas das passagens mais marcantes de sua trajetória. Além de sua incontestável contribuição à música como criador e principal divulgador de um gênero musical (o afrobeat), ele dedicou sua obra à contestação das desigualdades na Nigéria e na África. Seu ativismo incomodou os militares e ele foi vítima de sucessivas agressões. No episódio mais grave, sua casa foi invadida por centenas de soldados que distribuíram porrada, estupraram mulheres e arremessaram a mãe de Fela (a militante e precursora do feminismo na Nigéria, Funmilayo Ransome-Kuti) do terceiro andar – dias depois, ela morreria em decorrência dessa agressão. O músico se casou em uma mesma cerimônia com 27 mulheres e todos (além de músicos de sua banda e amigos) viviam na mesma residência, batizada de República Kalakuta. Nos anos 80, um homem de Gana conhecido como Professor Hindu se torna seu guru espiritual. O comportamento de Fela se torna agressivo e isso fez com que muitos amigos se afastassem – o filme não se furta em abordar profundamente essa fase.

A primeira sessão do filme no festival aconteceu no domingo 7/4, no Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista. No mesmo dia, na comunidade de Guadalupe, no Rio de Janeiro, uma família negra foi vítima de um fuzilamento por parte do exército, que disparou 80 tiros contra um automóvel – o músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, morreu. Um dos entrevistados de "Meu Amigo Fela", o ativista, poeta e cineasta jamaicano Lebert "Sandy" Bethune dá uma declaração que soa como um lema para os brasileiros em 2019: "não há alternativa senão resistir". A Radiola Urbana conversou com Joel Zito Araújo por telefone. Confira!

Como surge o seu interesse em fazer um documentário sobre Fela Kuti?
Foi uma casualidade. O Carlos Moore me procurou depois de ter visto meus filmes. Ficamos amigos e, pouco tempo depois, ele me deu a tradução do livro dele "Fela – Esta Vida Puta" (editora Nandyala, 2011). Eu conhecia um pouco da música do Fela, mas não conhecia a história. Ele me falou: "acho que você é o cara pra fazer um filme sobre ele, eu sinto isso". A partir daí, comecei a pensar. Eu já sabia, desde o início, que eu teria dificuldades porque o Brasil não tem tradição de fazer filmes sobre personagens estrangeiros. Nossa tradição, especialmente pra financiamento, é para projetos culturais brasileiros. Inclusive a Globo Filmes, que já entrou em outros projetos meus, falou: "pô Joel, sua ideia é muito legal, mas não é cultura nacional". Eu passei uns seis anos procurando esse dinheiro até que finalmente eu consegui ganhar um edital do BNDES e aí o filme começou a se viabilizar. Na medida em que eu fui pesquisando, lendo e relendo o livro, tive longas conversas com o Carlos e fui cada vez mais me apaixonando pela história.

Muitos depoimentos são surpreendentes, de muita intimidade. Acha que seria possível conseguir esse tipo de conteúdo dos entrevistados sem a presença de Carlos Moore?
Não, acho que essa intimidade só foi possível por causa dele. O Carlos viveu a história, sofreu, sorriu, partilhou do destino do Fela. Eu acho que é um filme de intimidade, esse foi o meu dispositivo. Se não fosse o Carlos, eu teria dificuldade de fazer o filme. Essa é minha impressão. E à medida que eu fui conhecendo ele, fui percebendo o potencial dele. Fui intuindo que ele, numa conversa com essas pessoas diante das câmeras, ia funcionar muito bem. Quando gravamos o primeiro encontro, tive a certeza de que ele era um grande anfitrião e conversador. Eu percebi que eu tinha acertado no dispositivo que eu inventei, que era de trabalhar o Fela a partir da intimidade, dos seus amigos, desse rememorar.

A partir desses dois personagens, o filme reflete sobre a intelectualidade negra de um modo geral. Essa é uma ideia que surge desde o início do projeto ou se desenvolveu durante o processo?
Foi algo planejado desde o início. Essa era a intenção do filme. Mas eu sempre fui aberto à surpresa. Por exemplo, o momento em que o Carlos encontra com a Sandra foi surpreendente. Eu não a conhecia pessoalmente, embora soubesse da força. Quando eu vi aquela mulher poderosa… O Carlos estava no carro do lado de fora, a gente já dentro da casa dela esperando. Ela passou duas horas se maquiando. A única coisa que ela pediu foi que a gente pagasse um maquiador pra ela. Quando ela apareceu com a cara pintada à maneira das dançarinas do Fela, achei aquilo sensacional. Os dois se abraçaram e já começaram a chorar. O Carlos, inclusive, chorou mais do que ela. Diante desse choro, ela conduziu e falou: "vamos! Vamos pra lá". Pegou ele e arrastou. Já fui me encantando com essa força e capacidade de condução dela. E a conversa deles pegou fogo.

Por que apenas uma das esposas de Fela é entrevistada?
O filme tem 90 minutos, não cabia tanta entrevista. Eu também não queria ficar fazendo picadinho, tipo reportagem de tevê. Eu queria longos depoimentos, intimidade. Também não foi fácil. O Fela gerou renda pras pessoas, algumas ficam na expectativa de dinheiro. Não é fácil marcar essas entrevistas. No momento que falamos com a Najite Mukoro, percebi a riqueza da entrevista e fiquei tranquilo. Percebi que não tinha a necessidade de buscar outras entrevistas.

Teve alguma entrevista que foi mais complicada nesse sentido?
Até teve, mas não quero falar porque fica meio fofoca, meio mágoa. Uma dificuldade grande veio do governo da Nigéria. Eu não podia ir com a minha equipe pra lá. Perdi muito dinheiro. Nós fizemos algumas filmagens em Paris e depois iríamos direto pra Lagos (em 2016). Eu já tinha comprado as passagens pra equipe inteira, deixado os passaportes na embaixada da Nigéria em Brasília por dois meses, e dois dias antes da viagem, me avisaram que não iam me dar o visto. Na hora que eu for prestar contas com a Ancine, podem me perturbar por causa disso. Eu não só perdi a passagem, como eu tive que pagar uma multa pra poder remarcar o voo e voltar de Paris pro Brasil. Quando eu finalmente consegui ir à Nigéria (em 2017), fomos somente eu e o Carlos, sem minha equipe – eu tive que gravar com uma equipe local, que eu não conhecia, foi bem mais complicado. Deu tudo certo no final, mas o governo da Nigéria dificultou muito. E lá em Lagos, no meu dia de descanso, quando saí pra passear, fui preso por um policial corrupto que queria me extorquir. Quando me recusei a dar bola pra ele, fui pra cadeia. Se não fosse a intervenção de um antigo produtor de cinema, que chamou o presidente do sindicato dos atores pra ir na delegacia me resgatar, eu poderia ter ficado vários dias preso. Me prenderam às nove da manhã e me soltaram às quatro da tarde.

Na primeira tentativa, o governo da Nigéria recusou os vistos sob qual justificativa?
Eles disseram que a Glória Maria, da Globo, foi à Nigéria fazer uma reportagem pro Fantástico e falou mal do país. A partir daí, eles decidiram não permitir a entrada de jornalistas e cineastas brasileiros.

Você acha que pode ter a ver com o Fela ainda ser um assunto desagradável para o governo?
É óbvio. E também é uma atitude autoritária. Isso é coisa de ditadura, não é?

Com certeza. Aliás, após a sessão no último domingo, você fez um comentário sobre como a obra de Fela conversa com o Brasil de hoje. Qual é exatamente essa relação, no seu ponto de vista?
Está diretamente relacionado com o que aconteceu no último domingo, no Rio de Janeiro: o assassinato de um músico, no carro com a família, que levou 80 tiros dos militares. A mulher sai desesperada e eles ainda tiram sarro da cara dela. Não respeitam pretos e pobres, consideram o brasileiro comum e negro uma ameaça. Fela lutava contra isso e foi extremamente punido por conta de uma música ("Zombie", 1975) em que ele fala exatamente desse descontrole dos militares, que fazem esse tipo de barbaridades. Fela, ao comentar a sociedade nigeriana, é como se estivesse comentando o Brasil.

Sua obra sempre refletiu sobre o racismo e parece que a gente não progride nessa discussão. Você ainda tem esperança que o Brasil um dia possa virar essa página?
Acho que o racismo ainda estará em foco na história do mundo durante muito tempo. Mas eu acho que o Brasil vai chegar em um determinado momento que isso será um problema menor – não um problema estruturante como é hoje. Ainda vamos levar muito tempo, porque a sociedade brasileira se recusa a enfrentar o racismo e leva vantagem pela desigualdade gerada pelo racismo. Tem muita gente que leva vantagem com isso. Você, como classe média, tem uma empregada doméstica e paga metade ou o dobro do que você gasta pra comer com a sua mulher em um restaurante no final de semana, isso é um privilégio. O racismo não é só uma questão de educação, é uma questão de manutenção dos privilégios. Por isso, acho que é uma luta muita dura. Estamos vivendo um dos piores momentos nesse sentido, porém acredito que seja uma passagem. Em um determinado momento, a sociedade vai perceber o erro que está cometendo ao alimentar esse monstro. Não sei quanto tempo isso vai demorar, se serão três ou dez anos, mas em algum momento cai por terra. Ainda teremos muita luta pela frente.

Qual é o papel da arte nessa luta?
Eu acho que a gente dá uma modesta contribuição provocando esse tipo de debate e reflexão. A gente faz parte de uma onda que ajuda as pessoas, no momento em que elas vão se divertir, sair com uma reflexão que pode ajudá-las a compreender melhor a sociedade de hoje e os caminhos pro futuro. Eu sonho com a arte do mesmo jeito que o Fela.

Você e Carlos falaram muito, depois da sessão, sobre a importância de se fazer um filme que não se limitasse a retratar um herói do gueto. Por que essa preocupação?
A gente queria evitar a folclorização do Fela. Ele é muito folclorizado. Esse Fela que o Carlos entendia e é o mais real é um artista preocupado com os destinos da África, um cara pan-africanista, politizado, a música dele é exatamente uma explosão por conta dessa consciência que ele passa a ter a partir do contato com a Sandra e com o movimento black power dos Estados Unidos. É isso que faz ele dar o salto.

Você ressalta também a importância de não esconder as sombras do personagem, né?
É. Eu sou contra e me desagrada profundamente toda biografia que é só celebrativa. Eu saio desconfiado de que fui enganado, que não tive acesso ao personagem. Por natureza, como cineasta e artista, sou contra essa mania escapista que tem o cinema brasileiro em suas biografias. Quando eu enfrentei o Fela, já sabia de antemão que eu não ia ceder e cair nessa esparrela de fazer uma coisa celebrativa e bonitinha. Todos nós temos o nosso lado de sombras e as forças negativas dentro de nós mesmos. E se nós não nos preocuparmos com isso, acabamos sendo tomados por esse lado. Cada um enfrenta isso de uma forma diferente. Não existe um ser humano puro, bonzinho, sem inveja, sem ressentimento, sem mágoas, sem ambição… Quem não tem o cuidado de perceber que tem isso dentro de si e que tem de lidar com isso, pode ser tomado por esse lado de sombras. O Fela foi tomado por isso por motivos muito pesados: ele foi violentado, preso dezenas ou centenas de vezes, foi espancado, viu a mãe ser assassinada e jogada do terceiro andar da casa onde ele morava. Eu estaria fazendo a mesma bobagem que eu vejo outros cineastas fazendo, se eu não entrasse nesse lado de sombras do Fela.

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Sobre o autor

Ramiro Zwetsch é jornalista, DJ residente da festa Entrópica, sócio da Patuá Discos e criador do site Radiola Urbana. Foi editor-chefe dos programas "Manos e Minas" e "Metrópolis", repórter de música do Jornal da Tarde e colaborou para "Ilustrada", "Caderno 2", “Bravo!”, “Rolling Stone”, “Bizz”, “Carta Capital”, “Select” entre outros.

Sobre o blog

Divagações e reflexões sobre as maravilhas contemporâneas e pérolas negras da música Brasil adentro e mundo afora.

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