"Taurina", de Anelis Assumpção, é um disco pra história
Ramiro Zwetsch
26/09/2018 12h40
Elas sim: "Vagarosa" (Céu, 2009); "Efêmera" (Tulipa Ruiz, 2010); "Selvática" (Karina Buhr, 2015); "Taurina" (Anelis Assumpção, 2018). Não é por acaso. Os adjetivos femininos que estampam os títulos de alguns dos melhores discos da música brasileira recente significam muito. São trabalhos de mulheres compositoras, artistas que vieram pra ficar, que representam o agora e serão lembradas com a devida importância quando o tempo passar. É inegável. Na noite de ontem, na premiação do canal Multishow, Anelis foi celebrada merecidamente com o melhor disco do ano na votação do superjúri do evento. Seu álbum é uma obra necessária e completa: capa absurdamente linda (ilustração de Camile Sproesser), letras de inspiração que transborda e que despertam inevitável identificação, a voz principal acomodada confortavelmente no centro dos arranjos, melodias sempre no alvo e um todo que tira o fôlego e mexe no âmago. É um disco pra história.
O ambiente da criação do trabalho foi a cozinha de Anelis, de onde surgiram dez das 11 músicas do repertório. Apenas "Amor de Vidro" foi composta em outra cozinha, em uma casa de praia na Bahia. É um detalhe que reverbera: o sabor serve às composições e nos oferece um banquete em que o paladar pode ser entendido de forma literal ou como metáfora para outros sentimentos igualmente vitais – o amor, o afeto e a dor da perda. A artista teve de lidar com a partida de sua irmã mais velha, Serena Assumpção, em 2016. "Taurina" traz ecos dessa experiência de várias formas. Serena é parceira de Anelis em uma das canções ("Chá de Jasmim"), é lembrada desde o título de outra ("Gosto Serena") e o álbum é dedicado a ela.
Anelis conversou com o blog em maio deste ano sobre a presença de Serena em "Taurina". Aproveitamos a oportunidade do prêmio recebido para publicar sua resposta tão cheia de sensibilidade como os versos que ela escreve.
Serena é uma presença, tem música dela e o disco é dedicado a ela. Como a experiência da perda te influencia nesse trabalho?
Houve um momento, em que eu também fiz analogias das músicas com a sua morte ou sua doença ou seu estado enquanto doente – embora eu tenha escrito enquanto ela ainda estava viva. "Pastel de Vento", pra mim, pode ser por que quando ela descobriu o tumor no seio, veio em minha casa e me pediu para apalpar. Disse: 'olha Anelis, tem o formato de um limão'. Coisas assim talvez tenham sido colocadas pra fora como uma forma de tentar entender essa dor e lidar com ela. "Escalafobética" também é uma música que carrega essa inconsciência – no verso "a fim do término da agonia do agora que parece vir de antes de antes de antes de ontem". Ou ainda o verso "quando roxeia, sobrenuvem" que é esse momento em que o corpo para, a boca fica roxa, a morte e o espírito já acima das nuvens. "Gosto Serena", que fiz depois de sua morte, é sobre essa saudade cruel, a injustiça de não poder mais tocar alguém, ouvir sua voz. Ou "Mortal à Toa" que expressa o questionamento sobre o fim ou sobre o como ser no durante. O mês de agosto, que aparece mais de uma vez, foi um período muito dolorido de uma de suas internações para radioterapia. Enfim… No fim das contas, acho que fiz um disco triste. A tristeza me acompanha faz tempo. A tristeza é natural.
Sobre o autor
Ramiro Zwetsch é jornalista, DJ residente da festa Entrópica, sócio da Patuá Discos e criador do site Radiola Urbana. Foi editor-chefe dos programas "Manos e Minas" e "Metrópolis", repórter de música do Jornal da Tarde e colaborou para "Ilustrada", "Caderno 2", “Bravo!”, “Rolling Stone”, “Bizz”, “Carta Capital”, “Select” entre outros.
Sobre o blog
Divagações e reflexões sobre as maravilhas contemporâneas e pérolas negras da música Brasil adentro e mundo afora.