A saga do groove etíope
Ramiro Zwetsch
23/05/2018 07h32
A música guarda mistérios que demoram pra ser desvendados. O chamado ethio-jazz é um deles. Fenômeno na Etiópia entre 1969 e 1975, o gênero absorvia a influência do soul e jazz norte-americanos em cruzamentos com a complexa escala musical local e resultava em um som muito específico, fascinante e instigante. Essa produção, no entanto, não reverberou fora do país à época e por pouco não ficou esquecida.
O filme "Ethiopiques – Revolt of the Soul" (de Maciej Bochniak) lança luz sobre os fatos que cercam essa história e é um dos selecionados para o festival In-Edit Brasil – que chega à sua décima edição e é um evento sempre recebido com muito carinho pela Radiola Urbana, já que sua programação é toda voltada para documentários musicais. Ao longo destes anos, o público teve o privilégio de assistir no cinema uma extensa lista de títulos que não chegariam de outra forma à telona: "I Call Him Morgan" (sobre o trompetista e prodígio do jazz Lee Morgan), "Beware of Mr. Baker" (sobre o baterista Ginger Baker, integrante do Cream), "A Band Called Death" (sobre a banda de proto-punk Death) e "Beats, Rhymes and Life: The Travels of a Tribe Called Quest" (sobre o grupo de rap A Tribe Called Quest) são só alguns exemplos.
O ethio-jazz poderia ser uma página rasgada da história da música. Com 102 singles em compactos de vinil e 12 LPs lançados, a gravadora Amha Records, fundada por Amha Eshete, construiu um legado no começo dos anos 70, fomentou o surgimento de um novo gênero musical local e projetou artistas como Mulatu Astatke, Girma Bèyènè, Alèmayèhu Èshèté, entre outros. Em 1974, a guerra civil no país interrompeu essa produção, músicos foram presos e a fabricação de discos foi encerrada. "Foi o fim de minha de minha era no negócio da música etíope", diz Amha Eshete, em depoimento que está no filme. Os conflitos no país se estenderam até 1991 e levaram 1 milhão e 400 mil pessoas à morte.
A produção musical do período anterior também teria morrido, não fosse pela obsessão do produtor francês Francis Falceto. No começo dos anos 80, por intermédio de um amigo, ele escuta um LP de Mahmoud Ahmad e inicia então uma pesquisa em torno do ethio-jazz que detona uma série de eventos que fazem um estilo musical esquecido em seu próprio país ganhar o mundo a partir do fim dos anos 90: o primeiro CD da série de coletâneas "Ethiopiques" é lançado em 1998 (atualmente a coleção já acumula 30 volumes) e muitos dos artistas que protagonizaram a era de ouro da música etíope voltam a fazer shows e gravar discos. No Brasil, tivemos a chance de assistir nos últimos anos shows de dois desses heróis: Mulatu Astatke (em 2011 e 2014) e Girma Bèyènè (no ano passado).
O documentário ressente-se de mais imagens de arquivo e recorre a animações que não dão conta de narrar com precisão passagens específicas dessa história. Além disso, é estranho não ver Mulatu Astatke no filme. Ainda assim, a força do groove etíope dos anos 70 e os detalhes que movem sua redescoberta são suficientes para arrebatar o espectador. O In-Edit Brasil 2018 acontece entre os dias 7 e 17 de junho e sua programação completa deve ser anunciada em breve. "Ethiopiques – Revolt of the Soul" é um dos filmes que você não pode perder.
Sobre o autor
Ramiro Zwetsch é jornalista, DJ residente da festa Entrópica, sócio da Patuá Discos e criador do site Radiola Urbana. Foi editor-chefe dos programas "Manos e Minas" e "Metrópolis", repórter de música do Jornal da Tarde e colaborou para "Ilustrada", "Caderno 2", “Bravo!”, “Rolling Stone”, “Bizz”, “Carta Capital”, “Select” entre outros.
Sobre o blog
Divagações e reflexões sobre as maravilhas contemporâneas e pérolas negras da música Brasil adentro e mundo afora.