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Radiola Urbana

Um curso (e uma playlist) para entender o jazz

Ramiro Zwetsch

19/09/2018 13h31

O jazz é complexo e tem uma história de mais de 100 anos. Naturalmente, há quem curta a sofisticação das orquestras da era do suingue e não suporte as experimentações da fase free – e vice-versa. Porém, há no mínimo um elemento que é comum ao gênero em todos os seus períodos: sua força para a afirmação do povo negro e a contestação ao racismo. O trompetista e ilustrador Edson Ikê dá um curso no Instituto Tomie Ohtake nesta semana que trata do assunto, além de nos fornecer a bela arte que usamos neste post. Trocamos uma ideia com ele e encomendamos uma playlist que traça um panorama tanto da evolução do jazz como do conteúdo que será abordado nas aulas. Confira!

Como sintetizar a história do jazz em 5 horas de curso?
Busco mostrar um panorama desde suas origens até o free jazz. Tenho que fazer escolhas e lidar com a frustração de resumir. No caso de sons e vídeos, busco apresentar trechos ao invés da música inteira. O objetivo é estimular a formação de público e pesquisa posterior.

Na sua opinião, qual é a importância desse gênero musical na luta pelos direitos civis dos negros?
O jazz, como toda a música negra em geral, sempre esteve conectado com os anseios do povo negro, mesmo que muitos insistam em negar isso. Muitos jazzistas como Max Roach, Sonny Rollins, John Coltrane, Nina Simone, Abbey Lincoln, Duke Ellington, Charles Mingus, entre outros, manifestaram e tiveram preocupações políticas. Nos anos 60 e 70, a própria experimentação do jazz era em si, uma rebelião musical, comportamental e política.

A raiz do jazz é associada ao blues. No entanto, o que entendemos destes dois estilos hoje pode gerar alguma confusão na compreensão de um ouvinte leigo. Com se explica essa genealogia?
O fio condutor é entender o blues como DNA, pai de todo "jazz legítimo". Entender o blues e sua oralidade e subjetividade negra antes e pós-abolição nos EUA ajuda a distinguir os estilos musicais e suas influências, não só entender a "blue note", mas a voz negra como base para articulação, a forma, a dinâmica e o estilo de tocar os instrumentos. Organizo este curso há uns 9 anos, sigo como referência o livro "O jazz e sua influência na cultura americana", edição brasileira de 1967 – o título original é "Blues People – Negro music in White America" do escritor Amiri Baraka (LeRoy Jones) – e alguns ensaios.

Hoje em dia (e já há algumas décadas), o fenômeno do rap é algo determinante na formação do jovem negro no Brasil, na África, nos Estados Unidos e na Europa. Acredita que o jazz tinha a mesma importância nas décadas anteriores? E, musicalmente, como esses dois gêneros se relacionam?
O jazz, depois da revolução do bepop, perdeu seu apelo de massa, muito também pelo o avanço do rock. O bebop, além de sofisticação técnica, reivindicava status de arte, como a música clássica europeia. Dizzy Gillespie dizia que "queria fazer uma música tão complexa que os brancos não copiassem". Esta mudança de comportamento e posicionamento diante do racismo influenciou uma gama de jovens músicos, intelectuais, escritores… E penso que esta história e evolução do gênero pode contribuir com fortalecimento espiritual e intelectual da diáspora negra ainda hoje. Muito artistas de rap usam samples de jazz como base fundadora, como no caso do Wu Tang Clan – os baixos acústicos, timbres de bateria… Escuto muito o Madlib e penso que ele reverencia o gênero e aponta para experiências significativas, como no seu projeto Yesterday New Quintet. Produtores como Flying Lotus e trompetistas como Christian Scott, Maurice Brown, Roy Hargrove seguem na busca de experimentar jazz e o rap de forma inovadora e contemporânea – assim como ProjetoNave, Ba Kimbuta e Rádio Diáspora, entre outros, aqui no Brasil.

No seu gosto pessoal, qual é o período e / ou artista do jazz que mais lhe desperta interesse e por quê?
Gosto muito do hard bop, pelo resgate do blues e da música gospel (spiritual), e também pelo seu som "sujo" .Tem dois trompetistas que estudo e tenho profundo interesse, o Lee Morgan e o Kenny Dorham. Lee Morgan pela forma "debochada" de tocar, com ousadia e virtuosismo; Kenny Dorham pelo lirismo e malandragem. Essa pergunta é difícil, gosto muito dos bateristas, escuto os pianistas e os amigos aqui do ABC que seguem produzindo música instrumental.

1 – worksong (canções de trabalho) – origens – "Early in the Morning" – Alan Lomax
Exemplo de uma base comum da música negra é a forma de pergunta e resposta, como nos exemplos de presos no inicio do século XX no Texas. O tema segue tão atual – da escravidão do passado às prisões em massa do século XXI.

2 – spiritual – "How I Got Over" – Mahalia Jackson
Cantada pela Mahalia Jackson, essa música é um gospel que ganhou força e significado na luta pelos direitos civis. Foi cantada na famosa Marcha de Washington.

3 – ragtime (1890) – "The Entertainer" – Scott Joplin
O pianista Scott Joplin é pioneiro no estilo que é uma das origens do jazz, fazia muitos trabalhadores da via férrea dançarem.

4 – New Orleans (1900) – "New Orleans Stomp" – King Oliver's Creole Jazz Band
Caracterizado por três linhas melódicas que contraponteiam executadas por um trompete, um trombone e um clarinete. Música executada pela Creole Jazz Band, cujo trompetista líder King Oliver apadrinhou o Louis Armstrong. O ritmo original se aproxima da marcha europeia. O calor desta música se relaciona com a viva execução individual, articulação, entonação, vibrato e modos de ataques de cada instrumentista. O fraseado, em geral, lembra mais a articulação vocal do que a instrumental — os músicos quase falavam com os instrumentos.

5 e 6 – Chicago (anos 20) – "Black Botton Stomp" – Jelly Roll Morton / "St. James Infirmary (Gambler's Blues)" – Louis Armstrong
Na primeira Guerra Mundial, muitos músicos migram de New Orleans para Chicago em busca de trabalho. Começavam as primeiras mudanças do gênero, com destaque para músicos solistas como Jelly Roll Morton e Louis Armstrong.

7 – swing (anos 30) – "Take The A Train" – Duke Ellington
O estilo é o ápice do jazz comercial, com nome estampando até em caixas de sabão em pó. Era das grandes orquestras, do surgimento do rádio, das grandes cantoras como Billie Holliday e Ella Fitzgerald. Duke Ellington, pra driblar as leis racistas que o impediam de se hospedar com sua orquestra nos hotéis, compra um trem luxuoso e circula com ele por todos os estados norte-americanos. Esta música é um clipe desta fase: "Take the A Train".

8 – bebop (anos 40) – "Koko" – Charlie Parker
Velocidade, virtuosismo musical, postura política, orgulho negro… Foi o espírito negro de revolta e inovação, com a crise de 29, que fez com que muitas orquestras se desfizessem e o bebop começasse a ser germinado nos porões do Minton Playhouse, com Dizzy Gillespie (trompete), Charlie Christian (guitarra), Thelonious Monk (piano), Charlie Parker (sax alto), Max Roach (baterista), entre outros.

9 – cool jazz (anos 50) – "Moon Dreams" – Miles Davis
Com influência de música clássica, arranjos mais elaborados e a eliminação do excesso de vibrato, o jazz fica mais "frio" e introspectivo na linguagem de músicos como Miles Davis, Chet Baker (trompetistas), Gerry Mulligan (sax barítono), entre outros. Miles Davis lança um disco inovador, "Birth of the Cool", com um noneto e o anúncio do surgimento do estilo cool.

10 – hard bop (anos 60) – "Dat Dere" – Art Blakey & The Jazz Messsengers
O estilo é um resposta ao cool, que tentava "academizar" e "embranquecer" o jazz. O hard bop, apesar do nome, não era tão pesado assim – buscava encontrar as suas raízes negras na música spiritual, no gospel e no blues.

11 – free jazz (anos 70) – "Civilization Day" – Ornette Coleman Quartet
Com acirramento na luta pelos direitos civis, guerras, racismo, o jazz estava em erupção e Ornette Coleman (sax alto e violino) e Don Cherry (trompete) fizeram um retrato deste caos e romperam com convenções de ritmo e harmonia, propondo uma nova forma de sentir e ouvir os sons.

Vai lá:
História Social do Jazz – das Origens ao Free Jazz
Quando:
21 e 22 de setembro (sexta, das 19h às 21h; sábado, das 15h às 18h)
Onde: Instituto Tomie Ohtake – Av. Brigadeiro Faria Lima, 201
Quanto: R$ 200,00

Sobre o autor

Ramiro Zwetsch é jornalista, DJ residente da festa Entrópica, sócio da Patuá Discos e criador do site Radiola Urbana. Foi editor-chefe dos programas "Manos e Minas" e "Metrópolis", repórter de música do Jornal da Tarde e colaborou para "Ilustrada", "Caderno 2", “Bravo!”, “Rolling Stone”, “Bizz”, “Carta Capital”, “Select” entre outros.

Sobre o blog

Divagações e reflexões sobre as maravilhas contemporâneas e pérolas negras da música Brasil adentro e mundo afora.

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