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Radiola Urbana

Um Coltrane inédito 55 anos depois: três saxofonistas brasileiros comentam

Ramiro Zwetsch

13/06/2018 10h19

Há esperança: gravações inéditas de John Coltrane (1926 – 1967) foram encontradas e o disco "Both Directions at Once: The Lost Album" será lançado no dia 29 de junho. As sessões aconteceram em março de 1963, período que registra o auge criativo do saxofonista e seu quarteto que é considerado por muitos o mais inspirado da história do jazz – com Elvin Jones na bateria, McCoy Tyner no piano e Jimmy Garrison no baixo. É papo muito sério, um raro acontecimento, coisa de louco mesmo. Fãs que nunca deixam de se impressionar com a intensa produção desta banda (15 LPs entre 1961 e 1967, embora seis deles póstumos e seis com outros músicos tocando além dos quatro), agora podem experimentar a sensação de ouvir um repertório inédito que vem à tona 55 anos depois de sua concepção. Sem exagero, na analogia com o rock é como se fosse descoberto um disco dos Beatles entre "Revolver" (1966) e "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" (1967); pro rap brasileiro, seria tipo um disco dos Racionais MC's entre "Sobrevivendo no Inferno" (1997) e "Nada Como um Dia Após o Outro Dia" (2002). E por aí vai.

Por enquanto, apenas uma de sete faixas foi divulgada na internet. "Untitled Original 11383" é o transe do quarteto em sua essência, mais um registro do voo contínuo iniciado em "Coltrane" (1962), que se eleva em "Crescent" (1964), vai ao além em "A Love Supreme" (1964) e radicaliza em "Ascension" (1965). O soprano começa já em fúria, uma sequência de notas que acelera a banda e emenda em um solo daqueles. Depois, o piano também sola e o sax descansa. Jimmy Garrison pede passagem e ataca em um solo de contrabaixo com o arco que começa com o acompanhamento exclusivo da bateria, mas depois segue só. Finalmente, a banda retorna para a última parte como uma unidade, uma engrenagem de quatro peças em que o sopro decola na direção do impossível e os outros instrumentos o escoltam e o impulsionam para garantir plenitude na aterrissagem sempre segura.

A Radiola Urbana embarca nesse nirvana e ouve três saxofonistas brasileiros e devotos de Coltrane para comentar a gravação: Roberto Sion, de 72 anos, ex-integrante do importante quinteto instrumental Pau Brasil e atual maestro da Orquestra Jovem Tom Jobim; Cuca Ferreira, integrante do Bixiga 70 e líder do projeto Atônito; e Thiago França, do Metá Metá.

"Maravilhoso. Coltrane e quarteto tocam no seu mais puro estilo, um jazz muito avançado para época", diz Sion. França pondera. "Não fiquei tão empolgado. Parece mais com as coisas pré-'A Love Supreme', do que com o que foi gravado adiante. É um material de transição. Essa música não me pareceu tão relevante. É óbvio: surgiu uma gravação inédita, um disco que foi engavetado, e é sempre um prazer ouvir as coisas dele", diz. 'Talvez tenha sido um desejo do próprio Coltrane engavetar esse disco, por ele ter sentido um material muito no meio do caminho. Apontando para algo de novo, mas nem tanto assim." O saxofonista do Bixiga 70 também detecta um ou outro detalhe que talvez tenham desagradado o jazzista. "Ouvindo a gravação e tentando entender por que não foi lançada, fiquei imaginando que talvez a música merecesse outra sessão. Há uma 'barrigadinha' depois do solo de baixo, a passagem do solo de sax pro piano também podia ser melhor captada… Mas me sinto procurando pelo em ovo: é John Coltrane e seu grupo no auge da forma."

Uma curiosidade da gravação é o uso do sax soprano – o norte-americano sempre preferiu o tenor, mas começou a variar a partir do começo dos anos 60. "O resgate do sax soprano está entre suas inúmeras contribuições. O tenor (com Coleman Hawkins, Lester Young, Ben Webster) virou sinônimo de saxofone e até mesmo do jazz. Com Charlie Parker, o alto ganhou o mesmo status. O soprano passou a ser considerado após ser usado por Coltrane. 'My Favorite Things' (de 1961), que é o álbum dele de maior sucesso comercial, simbolizou esse resgate", diz Ferreira. "Ele imprimiu sua personalidade ao instrumento, apontando um caminho estético bem marcante para sopranistas ulteriores", acrescenta Sion. "Coltrane buscava uma sonoridade menos temperada, com outro tipo de afinação que não a ocidental. O soprano é um instrumento meio selvagem, meio difícil de controlar e afinar, e você consegue usar isso a seu favor, fazer ele soar como uma coisa mais estranha mesmo", completa França.

A magia entre Coltrane, McCoy Tyner, Elvin Jones e Jimmy Garrison é um enigma do jazz que os nossos entrevistados nos ajudam a decifrar. "O quarteto tem um equilíbrio muito grande de forças. O que os caras estão fazendo ali é quase um esporte, você vê que tem um jeito físico de tocar que é quase como se os caras estivessem indo pras olimpíadas. A coisa é muito mais pautada em ritmo, o ritmo como quesito principal da execução, essa força. Não é aquela coisa do jazz controlado", observa o músico do Metá Metá. "Eram todos originais e inovadores em seus instrumentos. McCoy era um 'impressionista' com o jeito de apresentar a harmonia, Elvin Jones mudou o jeito de se tocar jazz na bateria (soltando a mão direita dos padrões de groove de jazz até então) e Jimmy Garrison tirou do baixo a função de ser apenas acompanhamento. Mas o que faz desse o quarteto mais importante do jazz, na minha opinião, é o nível de energia que eles atingiram. Era um vulcão em erupção constante. É difícil acreditar que aquela intensidade e volume vinham de 4 instrumentos acústicos", acrescenta Ferreira. "É a expansão da linguagem do jazz tonal, modal e atonal que pesquisaram, promoveram e apontaram para o futuro. A soma de quatro pessoas com um estilo próprio formando um todo maior ainda que suas partes", completa Sion.

O tempo passa e a supremacia de Coltrane segue intacta. Para além do jazz e do virtuosismo de seu quarteto, é o efeito emocional de sua música o que mais impressiona. "Sua importância é muito mais profunda do que apenas musical. Coltrane virou símbolo do que quer dizer 'ser artista', da busca por sua própria voz, sua própria expressão original", traduz o saxofonista do Bixiga 70. "E também de como trilhar esse caminho de forma inconformada, obcecada, inquieta. Uma nova gravação nos faz revisitar sua obra e nos reabastece dessa energia pra seguir na busca."

Haverá muita gente ansiosa no dia 29 de junho: "Both Directions at Once: The Lost Album" pode ser a peça que faltava no quebra-cabeça, o elo perdido para compreender a alquimia do quarteto Coltrane-Tyner-Jones-Garrison. A música agradece.

Sobre o autor

Ramiro Zwetsch é jornalista, DJ residente da festa Entrópica, sócio da Patuá Discos e criador do site Radiola Urbana. Foi editor-chefe dos programas "Manos e Minas" e "Metrópolis", repórter de música do Jornal da Tarde e colaborou para "Ilustrada", "Caderno 2", “Bravo!”, “Rolling Stone”, “Bizz”, “Carta Capital”, “Select” entre outros.

Sobre o blog

Divagações e reflexões sobre as maravilhas contemporâneas e pérolas negras da música Brasil adentro e mundo afora.

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